Publicado na revista Tesseract - ISSN 1519-2415
Rachel Moreno*
Tarzã, o homem das selvas, voltou para a terra das sacerdotisas sagradas, e trouxe consigo o progresso. A pedra lascada, a arma de longo alcance, a divisão entre a caça, a coleta e o cuidar da prole.
Lilith foi substituída por Eva, no imaginário do desejo de Adão, e veio a serpente, que trouxe Pandora, que levou ao pecado original... ao salvador, ao príncipe encantado, ao homem das pedras, ao sapo, à força, à violência... “Eu tenho a força!”..
Daí nasceram e se desenvolveram Débora, Raquel, Ester, Maria, Madalena... ah, Madalena!... Chorou, feito Maria Madalena... Daí nasceu Maria, Fátima, e finalmente Amélia – a que “era mulher de verdade”. E tome modelo ideal! Mas ideal para quem?
Mas como o desenvolvimento é desigual e combinado, depois de Amélia, com uma pequena mas significativa mutação, surgiu Amália, que chamou Joana, a francesa... e que de D’Arc em diante resultou em Olympe de Gouges, que teve a brilhante idéia de redigir e defender a Declaração dos Direitos das Mulheres, em pleno clima de Liberté, Égualité, Fraternité... Desnecessário dizer que morreu no cadafalso – igualdade, sim, mas não tanto!
A coisa, de fato nunca foi fácil e exigiu medidas drásticas para readquirirmos um mínimo de direitos e consideração. Não deve ter sido nada fácil ver a derrocada dos símbolos e ícones que sinalizavam a nossa força, soterrados sob signos alternativos que confundiam as pegadas e a compreensão.
Assim foi quando a rebeldia de Lilith, que se mandou para o deserto brincar com as almas inacabadas, revoltada ante a insistência de Adão na repetição da posição papai-mamãe (e tudo em que isto implica), e foi transformada pelo Livro Sagrado em ameaça às mulheres - quando ela volta a aparecer só para seduzir o noivo na noite de núpcias, ou para roubar os recém-nascidos. Assim aconteceu quando as sacerdotisas sagradas foram reduzidas à condição contemporânea de prostitutas. Assim foi quando as tábuas da lei foram entregues a Moisés, bem no monte onde antes se cultuava a Lua, divindade feminina, aos pés do qual ele se indignou ao ver o povo celebrando o bezerro de ouro (filho da vaca – um nos nomes da deusa).
Às vezes, algum resquício emerge por sob os escombros, a sinalizar – “aqui, as coisas foram diferentes” ou “aqui não foi sem luta que as mulheres perderam o poder”. Como no caso das Amazonas, que se apartaram dos homens, com quem se relacionavam apenas para procriar.
Teríamos muitos capítulos a redigir para dar conta destes relatos que nos chegam hoje como mitos. Assim como muitos mais para relatar o que a História não pode ocultar (já que a História é a versão dos vencedores) – a luta das mulheres pelo direito à educação (século XVII?), a luta das sufragistas pelo direito ao voto, no século XIX.
No mercado de trabalho
Trabalhar? Nós, mulheres, sempre trabalhamos. De sol a sol; e a lua – Isis, deusa da noite – passou a também ter que ser produtiva, mesmo que fosse “tão somente” do chamado “repouso do guerreiro”.
Fixação à terra, propriedade. Vencidos e vencedores; servos e castelões; excluídos e “in”, patrões, des/empregados, folgados, vagabundos, revoltados, inocentes, ingênuos, cúmplices. O trem e a linha. A máquina e a habilidade motora fina (e desvalorizada). A linha de produção. A separação do lugar da produção e da reprodução, da produção de mercadoria e da reposição da vida, do trabalho e do sagrado, do amor e do dinheiro, da produção e do usufruto, do consumo e da consciência, do tesão e do prazer e do dever e da produtividade.
A mulher entrou, por baixo. Por baixo na cama, cabisbaixa na rua, pela porta dos fundos no assim chamado mundo do “trabalho”. Pedindo licença para provar o seu valor, para mostra que sabe fazer, que pode ganhar para viver, produzir riqueza, clima, alegria, beleza. Talvez até prazer – no trabalho, talvez? Como trabalho, quem sabe? Dá trabalho, sempre!
Ainda me lembro, na época da construção do metrô, em São Paulo, quando os homens acorreram seduzidos pelo salário maior e direito ao alojamento, abandonando a varrição das ruas. Foi quando a Veja Sopave decidiu, segundo entrevista que me foi concedida por um diretor, “dar uma chance às mulheres”. E, se por 1,90 dinheiros, já não conseguiam homens, passaram a contratar mulheres por... 1,80. E, felizes da vida, se davam conta da responsabilidade destas para com o trabalho: varriam melhor, não ficavam tomando pinga no bar da esquina, não gastavam tempo “cantando” as empregadas das casas por onde passavam – enfim, rendiam mais e trabalhavam melhor.
E assim, mais mulheres chegaram ao mercado de trabalho. Num primeiro momento, nas tarefas similares às que desempenhavam em casa – professora, enfermeira, varredora, bordadeira, para além da linha de produção. Depois, também em outras tarefas e funções que passavam a ser mais mal remuneradas com a sua entrada.
No início, a fábrica exigia a comprovação mensal da menstruação – não queriam ter que pagar o salário e estabilidade-maternidade – e distribuíam chapinhas para controlar o tempo e freqüência das idas ao banheiro. Depois, amenizaram este controle ostensivo que gerou reações das mulheres em suas categorias profissionais organizadas.
E fomos entrando no mercado de trabalho, em duas levas: as mulheres jovens, assim que pudessem ou logo que se formassem, e as mulheres um pouco mais velhas, depois de terem cuidado dos primeiros anos de seus filhos.
Havia quem dissesse que, pelo fato de sermos mais responsáveis com os filhos, tendemos a faltar mais ao trabalho quando o filho está doente, ou quando há algum problema sério em casa. As estatísticas, porém, hoje mostram que somos as mais assíduas ao trabalho – provavelmente falta-se mais por ressaca do que por assistência ao filho doente.
Mas continuamos ganhando menos pelo mesmo trabalho.
Fomos todas estudar, o mais que pudéssemos. Hoje, as mulheres brasileiras têm mais anos de estudo do que os homens, o que também se reflete no trabalho.
Hoje, as habilidades incorporadas a partir da mudança do taylorismo para o toyotismo, enquanto modo de produção, valorizam a participação mais plena dos trabalhadores em benefício do trabalho. E, cada vez mais, as mulheres trazem para o mundo do trabalho, uma série de habilidades e talentos que desenvolveram alhures e que provam a sua importância no mercado de trabalho – a capacidade de ouvir, de lidar com a diferença, de trabalhar e promover o trabalho em equipe etc.
O que rendem estas capacidades adicionais? Não há interesse em medir, embora se saiba de seu valor para o empregador. E para o trabalhador e a trabalhadora? Nada...
E assim, porque entrou timidamente pedindo licença para provar a sua capacidade de produção, a mulher foi se dedicando mais e mais, em detrimento da qualidade de sua vida e do tempo dedicado à vida familiar. A jornada doméstica continua sendo predominantemente nossa, mesmo que consigamos dar conta dela concentrando-a num número menor de horas de trabalho adicional e não remunerado.
Os homens mudam
Para concorrer com estas colegas mais cuidadas, coloridas, perfumadas, produtivas e munidas de mais talentos, os homens passaram a se produzir mais.
Barriguinha lisa, malhação, tintura de cabelo, operações plásticas, cremes anti-rugas, toda a parafernália que nos tortura passou a ser vista como uma arma a não ser desprezada pelos homens – para a grande alegria da indústria cosmética e estética.
Cada vez mais mulheres chefiando a família também sinaliza a não-reestruturação do casal ante os novos papéis e importâncias. Sofrido, acabrunhado, falta ao homem o espaço de repouso do guerreiro... Este espaço que a mulher lhe propiciava, este espaço que nunca existiu para a mulher, esta guerreira...
Outros homens se acomodam melhor. Há os que dividem até o trabalho doméstico. No Brasil, dizem que hoje, eles se responsabilizam, em média, por 10% do trabalho doméstico.
Novos tempos, novas e velhas necessidades
Hoje o desenvolvimento tecnológico chegou a um estágio que nos permite pensar na redução da jornada de trabalho – para que todos tenham a ele acesso, e para que todos possam partilhar do trabalho e do prazer representados pelo trabalho doméstico e pelo cuidado da prole.
Mas, porque entramos pela porta dos fundos, não inscrevemos na pauta de reivindicações dos trabalhadores organizados a jornada doméstica. Poucas de nós estão na frente da luta pela redução da jornada de trabalho. Falamos, em nossas manifestações internacionais, da necessidade de se aumentar o salário mínimo, mas nós mesmas esquecemos de exigir a equiparação salarial (a trabalho igual, salário igual).
Ao invés de transformar o mundo do trabalho, de modo a humanizá-lo e torná-lo mais inclusivo e contemplador da diversidade, corremos o risco de aumentar o seu nível de exigência (em termos de formação, participação e produtividade) e de lucratividade (já que paga salários menores), que o aumento de participação de mão de obra feminina lhe propicia, sem contemplação ou dó para com as nossas necessidades gerais e especificas (afetivo-domésticas). Piorando o equilíbrio do ponto de vista do trabalhador, bem na contramão do que sempre desejamos.
Não está na hora de retomarmos esta discussão, que ficou pelo meio do caminho? Não seria esta a hora de juntar os homens e as mulheres nesta discussão?
Rachel Moreno é uma das mulheres que mais conhece a condição da mulher. Trabalha em cidadania há muitos anos e tem se tornado um ícone em estudos de gênero e inclusão social.
Um comentário:
Concordo plenamente!
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